segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Cachos Familiares - Luiz Ruffato.

Cachos Familiares

         Manuela tinha 82 anos. Morava com suas quatro filhas no interior paulista.
         Participava de grupos de dança, jogava cartas com as amigas, passeava diariamente com sua bolsa preta a tiracolo.
Circulava o batom nos lábios finos para flertar com as sombras dos muros brancos. Já estava viúva, mas não cansada de si.
         Apertava os olhos quando faceira, lançando o pescoço para trás como Ava Gardner. Seu rosto era uma correspondência aberta a vapor de chaleira. Delicado, confidente.
         Mas ela morreu por causa das bananas. Morreu de bananas. É a morte-banana que pode atingir todos os octogenários.
         Não é pra rir. Sua morte não foi patética. Esclareço com pesar.
         Conhecida no bairro pela preservação do salto em qualquer caminhada, vasculhava a feira em ruazinha de sua cidade, às terças. Cumprimentava os feirantes com o aceno leve de cabeça, como se estivesse começando uma dança de salão.
         Deslizava pela calçada, arrebatada talvez pelo sol esverdeado ou pelo cheiro de manjericão se abrindo úmido nas mesas; é mesmo sutil a felicidade, raro diagnosticar sua origem, emerge com fúria de um som ou cheiro de uma lembrança. A felicidade é frágil, nem pensamos muito nela para não perdê-la.
         Naquela manhã, ela não comprou um cacho de bananas como de costume. Comprou três dúzias. Encheu sua sacola de bananas. Voluptuosas, amarelas, listradas. Exagerou, mas pensou que as frutas amadureciam em semanas diferentes, que faria uma torta, um doce.
         Não previu que estava se matando.
         Ao chegar em casa, suas meninas um tanto mulheres se prontificaram a ajudá-la com a sacola. Correram ao portão.
         - Mãe, que pesado, o que trouxe?
         - O que é isso mãe?
         - Mãe, para que 36 bananas?
         - Isso não é normal, mãe.
         Mãe, você caducou? Dá pra montar uma banca.
         Ela mexia os ombros, envergonhada com o julgamento.
         O inocente tem ares culpados. O inocente não ensaia, é pego desprevenido. O inocente tem aparência muito mais criminosa do que um culpado.
         As filhas se reuniram na janta e decidiram que atitude de Manuela extrapolara anormalidade, um disparate, infelizmente estava ficando gagá.
         E duvidaram de cada evocação dali por diante, de cada frase de Manuela, da imaginação de Manuela. Toda conversa isolada é a de um louco.
         Questionaram seu domínio, sua independência, confirmaram fatos e datas para confundi-la.
         Um velho não pode cometer exuberâncias, saciar desejos de grávida, vontades altissonantes e esquisitas. Só o jovem. Se o velho supera a medida, já é visto como doente. Esclerosado.
         E não mais permitiram Manuela sair, brincar com as amigas, suspenderam suas atividades pela suspeita de doideira. O tribunal familiar é o único que ainda usa o confinamento.
         A proteger, sufoca. Ao cuidar, enfraquece.
         Os prisioneiros do amor nunca serão soltos.
         Ela não viu sentido em revidar, entregou-se lentamente ao sofá. Vidrada na televisão. No aquário de seu vestido floreado. Morreu em seguida de amargura.
         Morreu porque comprou duas dúzias de bananas. E tinha 82 anos.


Luiz Ruffato.

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